Ricardo é formado em Design de Interiores pela Escola Técnica Federal, graduado em Artes Plásticas pela UFPA e mestre em Arte e Tecnologia da Imagem pela UFMG. Trabalha como produtor e educador na área de Artes Visuais.
Iniciaste
a tua carreira na década de 90 produzindo desenhos e pinturas ligadas a
tradição representativa da arte ocidental, posteriormente os teus trabalhos
adquiriram um caráter conceitual com um teor mais crítico; como analisas esta
mudança?
Essa
mudança ocorreu quando a pintura se mostrou insuficiente para tratar de alguns
assuntos. Não que a pintura como linguagem seja insuficiente, mas sim, que
minha técnica era. A pintura como linguagem nunca será insuficiente.
Essa
mudança, como todas que ocorrem em minha vida, foi bem lenta e está ligada a um
processo de mudança como indivíduo, a buscas interiores.
Isso
requer um olhar destruidor e ao mesmo tempo fundador. Destruidor no sentido de oportunizar
a percepção de comportamentos ou valores que precisam ser revistos. Falo dos
comportamentos, pois por trás da obra há uma mentalidade ligada a um paradigma,
quando a mentalidade e o emocional mudam, a maneira de perceber o mundo muda...
isso me interessa muito.
Contudo,
se me perguntares qual caminho usar para efetivar isso, se é o padre, o pastor,
o psicanalista ou o curador que o mostrará... Não saberia te responder. Isso é
um caminho que cada um encontra.
Fundador
no sentido de estabelecer novas bases, e dar segurança àqueles artistas mais
receosos, que vivem sob a tutela das instituições e que (com razão) tem receio
de expor seus pensamentos, de passar vergonha ou vexame, de se colocar de forma
legítima e anarquizar o coreto. As fundações ocorrem para que um receoso deixe
sua zona de conforto e participe da mudança. Tal como agora, com a frase de
ordem “o direito à cidade” instigando as pessoas comuns para tomar as
ruas.
Em que
medida tu concilias a tua formação como design ao teu trabalho como
pesquisador, produtor e educador visual?
Eu parei
a produção artística e foquei na pesquisa de mestrado, encontrei alternativas e
revisei modos de ativar trabalhos colaborativos, revi minha postura, pensando
oficinas como ferramentas. Isso não é descoberta minha, vem sendo feito por
outras pessoas, tendo paralelos nítidos com Paulo Freire , Tião Rocha e
Celso Antunes . No caso dos gringos, é uma resposta também a crise econômica, o
governo não faz, as ONGS desviam-se de seus objetivos, vem a arte e toma pra si
a responsabilidade de propor mudança via o que muitos chamam de ativismo lento.
A educação age aí, como mediadora, provocando no participante outros olhares,
na vivência de situações mais do que contemplação.
Eu tinha
um zine na década de 1990, o Banthis, andava de skate, saia com os punks, na
época, skatistas construíam uma rampa juntando grana, daí todos a usavam na
praça. Os punks faziam ensaios em quartinhos no CDP e tocavam no Porão do Rock,
o teto era baixo, quando pulávamos batíamos com a cabeça nele, um amigo perdeu
um dente uma vez. Isso é algo que descobri na pesquisa, um revival do do it
yourself e a importância da ambiência, ou seja, quando há preocupação com
o outro, com a atividade coletiva, você chega a respostas pelo e para o Outro.
Meus
vizinhos gritam demais quando o clima está quente, mas quando chove ou faz frio
eles sossegam, hibernam. Descobri que o ambiente abraça o público (isso também
é design de interiores), quando trabalhei nos bairros periféricos como Guamá,
Sacramenta e Terra Firme em Belém, eu colocava um plástico grande no chão para
as crianças perceberem que aquele era seu espaço e a atividade corria solto.
Hoje não é diferente, o que é uma obra relacional? O que é uma proposição
convivial? É algo que se encontra em um espaço constituído para o Outro. E
dentro dele, outros aspectos influenciam, como o ritmo em que a proposição é
executada, há aí uma contra cultura, que é uma das finalidades da arte atual,
na pesquisa proponho uma desaceleração do nosso ritmo frenético. Nesse sentido
consigo aliar arte educação e design à arte contemporânea.
Na
condição de mestre em Arte e Tecnologia da Imagem como tu
avalias a qualidade da pesquisa em arte realizada no Brasil?
Uma
coisa dá para pontuar com certeza, é que há atualmente uma vontade de aproximar
o pensamento (seja no Brasil ou no mundo) de um novo paradigma para a
vida.
Parte
dessa mudança paradigmática vem ocorrendo através da inserção das novas
tecnologias nas artes visuais. Há dificuldades para tratar desses dados nos
planos de curso, por quê? Por que é todo um mundo novo, instável, se
apresentando. O aluno chega na sala de aula falando em 4chan , Anonymous,
crowfunding, Deep web , Ultima , Lulu... Entende? Esses mediadores te levam a
informações sobre Belo Monte, Muda Brasil, Corrupção em Brasília, etc. Quem
seria um dos personagens que propícia clareza a esses elementos dentro da
cultura cyber, para a compreensão do cenário da arte contemporânea? O professor
de arte.
Evidentemente,
podes referendar a importância da tradição! Porém, até a tradição tem sofrido
abalos sísmicos, Didi Huberman balançando os arcanos da História da Arte,
Giorgio Agamben balançando a sistemática do universo contemporâneo, Tião
Rocha no interior de Minas, propondo mudanças na sistemática do ensino, e junto
a isso, espaços alternativos em Belo Horizonte, como o Instituto Undió , o EXA
(Espaço Experimental de Arte.
Em Belém
há uma geração surgindo, Fiquei sabendo que o Gil Costa vai publicar a
dissertação dele, o John Fletcher é outro exemplo, veja o projeto RUA . Também
não posso deixar de citar as ações da Rede Aparelho , misto entre ativismo,
cultura cyber e intervenção crítica social. Há também os espaços novos, como o
Atelier do Porto, encabeçado por duas pessoas, uma delas acredito ter também um
compromisso grande com a educação, o Armando Sobral. O Curro Velho é outro exemplo da junção de
profissionais de ponta, que vem buscando uma reestruturação desse espaço
importantíssimo para Belém. Entre outros locais mais ou menos ligados à
educação, o presente momento promete.
Nesse
sentido, o desafio continua sendo conectar as pesquisas da academia ao que
existe fora dela, ao que é interessante para a comunidade, indo atrás desses
novos protagonistas no campo da arte que estão fazendo essa mediação entre
práticas contemporâneas e nova configuração do cenário social. Uma universidade
para a vida, como nos fala o Alain de Botton .
A
despeito dos significativos avanços ocorridos na legislação e na política
educacional no Brasil a condição da Arte como disciplina escolar ainda é muito
frágil e precária. Na tua opinião, o que falta para que esta realidade seja
definitivamente alterada?
Acho os
PCNS uma maravilha, são perfeitos! Mas, se me perguntares se funcionam como
deveriam, evidentemente, tenho de dizer que não funcionam. Acho que há pouca
contribuição daqueles que vivenciam o contemporâneo, sabem de suas lacunas, mas
infelizmente não criam alternativas para os sombras que percebem no campo da
mediação, da arte aplicada na sala de aula, da arte como um campo de
conhecimento. Ainda há a ideia, infelizmente, entre alguns artistas, que
arte não deve ser ensinada, que ela é sonho, que é inexoralvelmente
enigma.
Evidentemente,
ela é isso, mas não é só isso. Esse é um ponto de vista perigoso, pois,
extremista. Trabalhos atuais de arte contemporânea revisitam Augusto Boal
(do teatro), revisitam Paulo Freire (da educação), buscam Jacques
Rancierè (da filosofia), não por acaso, pois estão preocupados com a
relação espectador/participante/obra, como nos diz Claire Bishop .
Entretanto,
a distância entre arte educadores e artistas visuais continua, uns não visitam
os outros, uns não vão na palestra do outro, apenas quando um (a) ou outro (a)
arte educador (a) se torna expoente, representante de algum grande edital, aí
sim, rolam as visitas, os chazinhos da tarde e iniciam belas e profundas
amizades. Evidentemente, isso não existe somente em Belém, é uma realidade em
várias cidades do Brasil. Como pensar essas diferenças?
Estamos
tentando o “viver junto” sem necessidade de acompanhar uma agenda como fizeram
as vanguardas do passado recente, dar conta da diferença, do Outro no convívio
legítimo e não espetacularizado, veja bem, porquê pesquisadoras européias citam
atualmente Paulo Freire e Augusto Boal em suas pesquisas sobre arte
contemporânea? Porque as proposições participativas atuais não podem viver
apenas dos alicerces deixados por Fluxus, Helio Oiticica, Lygia Clark, Provos ,
Allan Kaprow, Internacional Situacionista, etc. Eles são trampolim. Quando o
assunto é o Outro, outras áreas tem de ser consultadas e aprofundadas. E qual
delas seria uma das indicadas? A meu ver, a arte educação.
A
preocupação de se adentrar o sistema de arte é legítima, mas o que fazer depois
que se está lá dentro é que a questão. A preocupação do artista com o público
que tem acesso às obras nos espaços expositivos é mínima. Qual o papel das
artes visuais no momento de mudança que o Brasil vive? Lembro dos trabalhos da
Lúcia Gomes , do Armando Queiróz , das intervenções da Rede Aparelho, das
oficinas do Coletivo Puraquê , do Grupo Urucum . E a geração de agora?
Nas
últimas décadas, os curadores, como profissionais ligados aos mercados de arte,
assumiram a condição de formuladores dos discursos que elegem os artistas e
justificam o valor de suas obras. Sendo assim, como artista profissional,
consideras possível manter uma produção com uma poética pessoal e com um viés
crítico sem artifícios ou concessões?
Falar
sobre curadoria requer adentrar em um paradoxo: distanciamento do sistema de
arte expositivo para falar sem receio de represálias e uma aproximação para não
falar asneiras e coisas sem fundamento. Atualmente, não sei de alguém que esteja
fazendo observações críticas sobre esse território.
A figura
do curador é imprescindível no tocante ao reconhecimento da estrutura do
sistema da arte, suas referências, meandros e aplicabilidades. Sua experiência
trás um acúmulo de vivências que o artista não teria como amealhar em pouco
tempo de carreira.
Contudo,
cada vez mais, o peso honorífico que essa tutela representa, faz com que as
escolhas desses (as) senhores (as) sejam feitas sem que eles percebam o quanto
a linha divisória entre vida pessoal e sistema da arte não é mais invisível ou
tênue. Quando essa linha deixa de existir, as relações que antes tinham um
caráter mais privado, viram assunto in box nas redes sociais, e caem em um
sistema de propagação de subinformação sobre a vida pessoal do curador em
questão, sendo por vezes, importante saber: que locais ele(a) frequenta, quais
seus artistas prediletos e até qual sua preferência sexual.
A
importância desses dados se tornaram explícitos no circuito, no sentido de
terem nitidamente por base, relações que independem da obra e se articulam a
partir de um outro eixo: o dos interesses pessoais. O repertório crítico fica
arruinado nessa estória, esquemas de fazer e conviver são mercantilizados,
abrindo brecha para as observações maliciosas da doxa ou dos próprios artistas,
que com direito, criticam essas posturas. Como responder a esse contexto sem se
deixar representar por ele?
Talvez,
uma alternativa seja cooptar as gerações que vão surgindo antes da cooptação
feita pelo modelo de curadoria tradicional. Isso, claro, depende de um cenário
montado e preexistente, artistas trabalhando colaborativamente para se
diferenciar do modelo hegemônico (e não como vemos atualmente: espaços
alternativos ao mainstrean, porém, cópias menores da estrutura hegemônica),
críticos freestyle (operando desligados de instituições) e professores
atualizados.
Um dos
impasses parece ser sempre o mesmo, o encanto e o feitiço que, por vezes, as
gerações questionadoras sofrem ao adentrar no sistema de arte, expostos ao
status, aos elogios, as premiações, a fama, enfraquecem o senso crítico e a
auto-crítica.
Também
tem a questão da crítica via ressentimento, isso é foda! Explico, o ressentido
age de acordo com reverberações do passado, ele está preso a algum tipo de
vingança, quando essa vingança é sanada, ele paralisa seu olhar crítico.
Precisamos de críticos com o olhar voltado para o futuro e não para o passado.
Assim como precisamos de artistas que estejam criticando o sistema de arte
porque querem mudanças nele, e não por não gostarem de fulano e beltrano.
“Igrejas
fazem silêncio” (VAUTIER)
Agradecemos ao Ricardo Macêdo por conceder gentilmente esta entrevista.